11 de ago. de 2008

ANISTIA E OS CRIMES DE LESA HUMANIDADE

A discussão sobre a revisão da Lei da Anistia de 1979 é falsa e serve para desviar a atenção do real assunto que entrou em pauta após as famílias Telles e Merlino, bem como o Ministério Público Federal moverem ação cível contra o Cel. Carlos Alberto Brilhante Ustra e outros responsáveis pela tortura e desaparecimento forçado no DOI-CODI de São Paulo, trazendo à tona os conceitos que estão em jogo e que definirão os rumos da construção do estado democrático de direito no Brasil e o desenvolvimento da cultura do Nunca Mais em nossa sociedade.
A ONU e a Corte Interamericana de Direitos Humanos através de estudos na área da Justiça Transicional definem quatro conceitos fundamentais para avaliação da transição de um regime ditatorial para um democrático, visando que a cultura do Nunca Mais se instale na sociedade. O direito a verdade, a não impunidade, a reparação e a mudança das estruturas, conceitos e atuação dos organismos de segurança pública, são os pilares que garantem esta transição e devem ser desenvolvidos, simultaneamente, como condição para garantir a cultura do Nunca Mais.
O Procurador Regional da República do Ministério Público Federal Marlon Alberto Weichter em palestra proferida em dezembro passado, aponta que o Estado brasileiro está inadimplente em três das exigências da ONU, exacerbando a reparação como forma de escamotear a não abertura dos arquivos, a impunidade aos crimes de lesa humanidade e a manutenção de estruturas, conceitos e forma de atuar dos organismos de segurança pública.
O Brasil é signatário de tratados internacionais que desenvolveram o conceito normativo dos crimes de lesa humanidade, tais como a Convenção de Haia, ratificada em 02 de janeiro de 1914 e o Estatuto do Tribunal de Nuremberg ratificado em 21 de setembro de 1945 por ocasião da entrada do Brasil na ONU, onde no artigo 6c são qualificados como crime dessa qualidade os atos desumanos cometidos contra a população civil, a perseguição por motivos políticos, o homicídio, o extermínio e a deportação, dentre outros. Dessa forma, o Brasil tem integrado ao seu sistema jurídico o conceito de crime contra a humanidade, o que obriga os estados membros da ONU a promover a punição de torturadores, como o Cel. Ustra bem antes do golpe de 1964.
O Estatuto de Roma ratificado pelo Brasil em 24 de setembro de 2002, em seu artigo 7 classifica a tortura como crime contra a humanidade e portanto, não possue cobertura jurídica da Lei da Anistia, definição adotada também pela Convenção Interamericana de Direitos Humanos, cuja jurisdição é reconhecida pelo Estado brasileiro.
As graves violações aos direitos humanos que aconteceram durante o período da ditadura militar foram reconhecidas oficialmente pelo Estado brasileiro através do livro Direito à Memória e à Verdade publicado pela Secretaria Especial de Direitos Humanos, o que leva a justiça em nosso país, pela devida obediência aos tratados e acordos internacionais ratificados, apurar e punir os autores de tais fatos.
Os Ministros Tarso Genro e Paulo Vannuchi realizaram em Brasília a Audiência Pública “Limites e Possibilidades para a Responsabilização Jurídica dos Agentes Violadores de Direitos Humanos durante Estado de Exceção no Brasil”, onde não se discutiu a revisão da Lei da Anistia, mas sim a distorção imposta aos brasileiros de que tortura é crime passível de anistia. Tortura não é crime político, nem tampouco comum e sim crime contra a humanidade, portanto imprescritível.
Quando perguntado ao presidente do Clube Militar, General Gilberto Barbosa Figueiredo, em entrevista publicada no sitio da instituição, se este é o momento de retomar esta discussão; ele argumenta "Não, acho que não. Pois o caminho que estávamos seguindo era de convergência, de harmonização. Esse foi o sentido da Lei de Anistia."
Teotônio Vilela que presidiu os trabalhos para a criação desta lei, deixou publicado em livro para a história através do Senado Federal, “um roteiro de como as coisas aconteceram” do começo ao final e é nítido que a legislação foi imposta através de mecanismos de controle parlamentar, como o esvaziamento das sessões em que propostas de alterações trazidas pelos membros do MDB foram sistematicamente rejeitadas e não discutidas. Através da maioria parlamentar, a ARENA votou o que os militares queriam para realizar a distenção e saírem impunes dos crimes que cometeram no período. “Ficou exclusivamente a proposta oficial” diz o Senador no prefácio do livro.
Das 306 emendas ao projeto de lei, o MDB apresentou 210, ou seja 68,63% e somente 19,52% foram aprovadas, sendo que a sua maioria em parte e conforme o texto do relator, o que reduz para muito pouco as alterações na proposta enviada pelo Gen. Figueiredo produzidas no difundido “diálogo” com a sociedade e a oposição, a despeito de todo o movimento pela Anistia – Ampla, Geral e Irrestrita. A charge publicada à época por Luiz Gê, diz o mesmo, mas mesmo assim não se trata de rever a Lei 6683 / 79. A falsa discussão da revisão da Lei da Anistia encobre a questão central, que é o desrespeito pelo Estado brasileiro da legislação internacional à qual estamos todos submetidos, que classifica a tortura como crime contra a humanidade, perpetuando o sentimento de impunidade, que é o esteio desta tão nefasta prática presente hoje em todos os estados brasileiros, conforme apontam relatórios da Justiça Global e Anistia Internacional publicados recentemente sobre a tortura e violações dos direitos humanos no Brasil.
A democracia brasileira não pode prescindir da abertura dos arquivos para exercer o direito a verdade, da localização dos desaparecidos políticos para afirmar a cidadania, da apuração e julgamento das violações aos direitos humanos para inibir a cultura e pratica da tortura e da revisão da política de segurança pública para efetivamente consolidar o estado democrático de direito, que respeite a todos os cidadãos e em todo o território nacional. Estes são nossos desafios como nação para termos um Nunca Mais.A paz é fruto da justiça e não do esquecimento!
Marcelo Zelic Diretor do Grupo Tortura Nunca Mais–SP e membro da Comissão Justiça e Paz da Arquidiocese de São Paulo.

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