6 de jan. de 2013

ATÉ NO FUTEBOL, O ARBITRIO IMPERAVA

O texto abaixo é a integra de um capítulo do livro Futebol & Ditadura

Nem Freud conseguiria definir o caráter de um repressor e de um torturador. Nos, hoje, romanticamente chamados “anos de chumbo” muitos episódios ocorreram que se Sergio Porto estivesse vivo, entrariam para o seu ” FEBEAPA – Festival de Besteiras que Assolam o País”. Livros com capas vermelhas, não interessando seu conteúdo, eram incinerados por serem considerados como de propaganda do “credo vermelho”. Memórias Póstumas de Braz Cubas, foi apreendido sob a suspeita de ser apologia disfarçada de Cuba. Livros sobre o “cubismo” de Picasso foram censurados, sob a alegação de pretensa propaganda da Ilha de Fidel.

Em Bauru, minha terra natal, o psicólogo alagoano Romeu Cajueira de Freitas foi preso e demitido da Estrada de Ferro Noroeste do Brasil, pois um profissional da área da saúde o delatou e o fez de forma perversa: denunciou que Romeu era carpinteiro no nordeste e estava se passando por psicólogo, a mando de Francisco Julião e Miguel Arraes para incutir o marxismo na cabeça dos ferroviários.

Os repressores acreditaram e levaram o atônito Romeu para a Cadeia Pública de Bauru. Aliás, precisavam acreditar para poder aumentar quantitativamente o número de comunistas presos e desta forma, mostrar para a população que o “credo vermelho” estava colocando em risco a tranqüilidade e segurança da família brasileira.

Afinal, comunista era contra a família e comia criancinhas.

Repressor, torturador e delator se tornam unos na insanidade mental e para tal comprovação, não se torna necessário exame muito acurado por parte de grandes especialistas.

Em Assis, interior de São Paulo, nos primeiros dias que se seguiram ao Golpe de 1º de Abril de 1964, militantes comunistas trataram de se livrar de jornais, revistas ligados ao Partido Comunista Brasileiro, colocando fogo ou simplesmente jogando-os em locais ermos. Flávio Sampaio, verdureiro e evangélico encontrou um pacote de jornais e começou a embrulhar seus produtos nestes. Alguma mente fértil correu a denunciá-lo como sendo secretário de agitação e propaganda do PCB.

Hilária seria esta história se o final não tivesse sido trágico.

A polícia, com sua truculência habitual invadiu a residência do verdureiro e sua esposa, grávida de nove meses, teve um infarto fulminante, falecendo juntamente com o bebê que esperava.

Coisas da repressão.

Acompanhando desde criança a repressão policial-política contra aqueles que ousavam pensar de forma diferente, que se posicionavam contrários as mazelas ditatoriais, sempre tive conhecimento de perseguições orquestradas contra sindicalistas, estudantes, comunistas, cristãos de vanguarda, artistas e outros integrantes de segmentos da sociedade civil organizada.

Bauru, que viu nascer à liderança comunista de José Duarte, maquinista da Noroeste do Brasil, preso inúmeras vezes durante os regimes de arbítrio implantados em nossa pátria, e uma delas, justamente no Ceará, haveria de ter outros laços com este estado.

Seu filho, Antonio Ferreira, o Toninho Guerreiro, um dos maiores centroavantes que o Brasil conheceu foi cortado da seleção brasileira tricampeã do mundo no México, em 70, pelo simples fato do ditador de plantão, general Emilio Garrastazu Médice preferir na seleção o Dario Maravilha. Os serviçais da ditadura, dentro de nossa seleção nacional inventaram que o Toninho tinha sinusite e em virtude desta presumível doença, não conseguiria jogar na altitude mexicana. Cortaram o Guerreiro, fez-se a vontade do ditador e Dario foi para o México. Encerrava-se, praticamente ali, a brilhante carreira de Toninho.

Ora, no futebol tivemos o caso de Afonsinho tachado e rotulado de contestador por usar barba, em uma época que as mentes retrogradas viam nos barbudos, seguidores naturais de Fidel e Che.

Agora tomo conhecimento de outro absurdo.

Fernando Antunes Coimbra, o Nando, no final da década de 60 era um promissor ponta-esquerda e começava a galgar a escada do sucesso, no meio futebolístico.

Ponta-esquerda?

Aí tem coisa, pensaram os militares golpistas. Dentro de seu rudimento intelecto, já calcularam que deveria atuar na esquerda para fazer proselitismo do marxismo.

Se fosse do bem, atuaria pela direita.

Nesse ínterim é preso, acusado de atividades subversivas, o marido de Cecília Coimbra, incansável lutadora dos direitos humanos, presidente do Grupo Tortura Nunca Mais do Rio de Janeiro, prima de Nando. Eduardo Antunes Coimbra, o Edu, coloca os livros da biblioteca da prima no porta-malas de seu carro e sai para escondê-los em local seguro e o irmão Nando, fica na casa da prima, hipotecando solidariedade, pratica esta comum na família.

A polícia invadiu a residência e prendeu todos os presentes, dentre eles, o Nando, levando-os para o DOI-CODI carioca, porta de entrada do inferno.

Ameaças e pau.

De repente, de jogador de futebol virou subversivo. E o pior, tinha passado em um concurso para ser professor do Plano Nacional de Alfabetização – PNA -, dentro do método de alfabetização de Paulo Freire.

Duplamente suspeito, só poderia ser culpado.

O proibiram de fazer o que amava fazer: jogar futebol.

Sempre por ordens superiores, os clubes não o contratavam, mesmo com seus técnicos querendo o craque no time.

A perseguição virou familiar.

Seu irmão, Edu, foi o artilheiro do Torneio Roberto Gomes Pedroza em 1969, assinalando 19 gols, tinha participado de competições pela Seleção Brasileira e era tido como nome certo na Copa do Mundo do México em 70.

Deficiência técnica?

Não, não foi porque era o irmão do Nando.

O irmão mais novo, Zico, era uma grata revelação do futebol brasileira e contava com sua convocação para as Olimpíadas de Munique em 72.

Não foi convocado.

Era irmão de Nando. O futebolista subversivo.

Coisas da repressão.

Tais fatos estão confirmados para a história graças a depoimentos de João Saldanha, técnico da seleção brasileira em 1970, exonerado pouco antes da Copa, após classificar de forma brilhante a equipe nacional, nas eliminatórias sul americanas e de Antoninho, técnico da seleção olímpica em Munique, no ano de 1972.

Estive presente, no dia 11 de Dezembro na sessão plenária da Comissão Especial de Anistia do Ministério da Justiça que julgou o caso Nando. Estava ali, representando Arcôncio Pereira da Silva, militante comunista e líder ferroviário, punido duplamente por sua militância política e nesta memorável sessão, tomei conhecimento dos absurdos cometidos contra o então jovem e promissor futebolista.

Absurdas atitudes cometidas pela repressão.

No mínimo achavam e tinham medo do seu achar, que na hora do gol, Nando o comemoraria com rajadas de metralhadora, cuidadosamente escondida dentro da sunga, de tal forma que não atrapalhasse seus movimentos em campo.

Nando foi anistiado.

O primeiro jogador de futebol anistiado no Brasil.

O Ceará Esporte Clube, que Nando defendeu com galhardia no ano de 1968, a Associação Anistia 64.68, Prefeitura Municipal de Fortaleza e outras organizações, entidades cearenses, prestaram e prestam significativas homenagens a este perseguido pelo regime militar.

Claro e evidente se torna que a anistia não tem o poder mágico de devolver a sua juventude e forma física para que retorne aos campos de futebol e prossiga uma carreira que se iniciou brilhante, vislumbrando horizontes promissores.

Tal oportunidade foi tolhida de forma inapelável pelos ditadores e seus agentes de mente obscura que tiraram de Nando a oportunidade e o prazer de jogar futebol e a nós, brasileiros, a oportunidade de aplaudir suas jogadas. Afinal, Zico em sua biografia escrita pelo jornalista Roberto Assaf, é taxativo ao afirmar que o craque da família era Nando.

Conversando com o amigo Lelo, clássico zagueiro que atuou por diversas equipes do interior paulista fico sabendo que quando este atuou pelo Marília Atlético Clube, em meados da década de setenta, ouvia os jogadores cariocas que com ele jogavam que o Zico tinha um irmão fichado como terrorista. Posteriormente, teve a oportunidade de jogar ao lado de Afonsinho, no XV de Novembro de Jau e por diversas vezes testemunhou a presença de agentes do DOPS e da Polícia Federal especulando, investigando os passos do atleta.

De toda essa história, aprendemos que os militares atuavam em todas as áreas da sociedade brasileira, até na mais popular e democrática que é a do futebol e que, resgatada a história de Fernando Antunes Coimbra, podemos colocar o NANDO na galeria dos heróis anônimos do povo brasileiro, cidadão que deu uma grande cota de sacrifício pessoal para que hoje possamos viver em um país livre e democrático.



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