O CAMINHANTE QUE NÃO PODIA ANDAR
Nos tempos em que a palavra “herói” encontra-se tão banalizada, que até os usineiros da cana – versão moderna dos antigos senhores de engenho – merecem este qualificativo, é bom dizer as coisas como deveriam ser. Alberto de Souza nasceu pobre, morreu pobre e quase desconhecido está. Mas é um dos poucos brasileiros do século passado em quem a ligação com esta palavra não pareceria falsa ou peça de retórica. Ele foi, durante toda a vida, um Herói com agá maiúsculo, muito embora dispensasse tais elogios com meia dúzia de impropérios.
Seu Alberto era magro, alto e tinha os cabelos lisos em permanente desalinho. Um olhar esperto denotava uma inteligência ímpar. Viveu por mais de meio século em uma casinha de madeira, na Vila Industrial, então um bairro afastado.
Era sapateiro. Seu ofício era o de fazer e consertar aquilo que usamos para caminhar. Seu Alberto, quando jovem, caminhou mais do que a maioria das pessoas. Percorreu a pé cerca de 24 mil quilômetros pelo interior do Brasil. Em dois anos andou por uma vida. Seu Alberto integrou a lendária Coluna Prestes, uma campanha militar para mudar o país. Perseguida pelo exército e por jagunços de fazendeiros, jamais foi derrotada militarmente. Eram tempos muito duros os do governo ditatorial de Arthur Bernardes, entre 1925 e 1927.
Mas aos 27 anos de idade ele deixou de andar. Dali em diante, passou a locomover-se com extrema agilidade, com o auxílio de duas cadeiras de palhinha velhas, passando de uma para outra. Inquieto e inconformado, ele reinventou um modo de locomoção.
Sua história faz parte da brutalidade com que as classes dominantes brasileiras sempre trataram o povo.
Alberto de Souza era um caipira de sangue quente. Nascido em Itapira, cresceu, viveu e envelheceu rebelde. Não era um rebelde das palavras, mas um missionário da ação. Mal completara 16 anos e envolveu-se na Revolução Paulista de 1924. Pouco se fala deste episódio, que teve marcada participação dos setores empobrecidos da população. Ali o jovem interiorano tomou gosto pela luta. Conheceu o tenente João Cabanas e engajou-se em na coluna de soldados que se embrenhou pelo interior paulista e chegou até o Paraná.
Foi assim que travou contato com um capitão de artilharia franzino e despachado. Era Luiz Carlos Prestes, que buscava voluntários para sua jornada.
Quando se tornou comunista, ainda na Bolívia, no final dos anos 1920, seu Alberto faria de sua opção política um molde para sua existência. Não pensou duas vezes ao se engajar nas articulações do levante de 1935 contra o governo Vargas, em São Paulo. A luta foi esmagada com brutalidade selvagem. Prestes perdeu a mulher, Olga Benário, mandada a um capo de concentração nazista, na Alemanha. Toda a cúpula do Partido Comunista foi jogada em masmorras por uma década. Alberto foi mandado para o presídio político da Vila Maria Zélia, na zona leste da cidade, onde foi selvagemente torturado.
Logo nos primeiros dias de cárcere, foi atacado por trás, por um carcereiro, com uma coronha de fuzil na base da coluna cervical. Desmaiou. Quando acordou, estava jogado em um porão, inundado até os joelhos. À noite baixavam o nível da água, para que pudesse dormir. As refeições resumiam-se a pedaços de pão atirados no líquido onde também eram feitas todas as necessidades.
O rapaz de Itapira saiu de lá, um mês depois, mais morto do que vivo. A marca em seu corpo foi terrível. Não tinha mais o movimento das pernas.
Alberto jamais se arrependeu da luta ou de suas ações. Ao contrário, continuou na ativa. Veio para Bauru, onde se casou e aprendeu as artes e ofícios de trabalhar o couro. À noite era secretário de finanças do comitê regional do PCB.
Após o golpe de 1964, a perseguição aos comunistas fez com que perdesse contato com vários companheiros. Mesmo assim, um rádio de ondas curtas o mantinha informado dos ares do mundo. E a avidez de leitura o fazia percorrer as páginas de Darwin, Hegel, Marx, Lênin, Florestan Fernandes e o que havia de melhor nas ciências sociais e políticas. Aos amigos pedia sempre mais e mais livros.
Seu Alberto morreu no início de 1991. Não acreditava em vida após a morte e nas peripécias da metafísica. Mas o velho inconformado segue vivo, vivíssimo. Um pouco dele está no coração de todo aquele que não se conforma com a vida como ela é.
GILBERTO MARINGONI é jornalista, historiador e autor de A Venezuela que se inventa, poder petróleo e intriga nos tempos de Chávez (Ed. Perseu Abramo, 2004)
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